"Ponto de partida ou Antes da chegada"

ONDE A REALIDADE E A FICÇÃO SE MISTURAM, EU ESTOU NO MEIO DELAS 

A relação que criamos com o real apresenta-se como uma potência - do latim potens, “aquele que pode, potente” - na forma como (des)construímos a nossa subjetividade. Interessa-me a forma como os mecanismos da ficção podem ajudar-nos a pensar o real, a descobrir novas perspetivas sobre o mesmo, a estabelecer novas relações e, consequentemente, a produzir novos níveis de sentido sobre o mesmo (percepção - do latim perceptio = “per” + “captio” = apreensão abrangente de alguma coisa. Ato ou efeito de perceber). 

Estando eu sentado à beira Tejo depois do almoço, na pausa para o café, um barco cargueiro passa por mim, como que por um acaso. Decido imediatamente, obedecendo a um impulso, fotografá-lo no exato momento em que abandona o rio em direção ao mar. E é aqui, nesta brevíssima sucessão de acontecimentos, que se inicia uma história de cruzamentos entre a arte e a vida, também conhecidas como ficção e realidade. 

Abandono a pausa para começar o trabalho. 

O instante em que o barco se cruza com o meu olhar é o momento do real no seu sentido mais primário, momento esse que sem a fixação da imagem ou o seu registo em palavras, sem a linguagem, não se comunicaria a mais ninguém, permanecendo desconhecido. Já o instante (decisivo) em que o fotografo e torno imagem faz com que comece a produzir uma realidade-outra a partir da primeira - o real começa a devir ficção, o barco devem imagem. Decido então intitular a imagem do cargueiro que parte. Empresto-lhe as palavras: "Ponto de partida ou Antes da chegada" e eis que se começam a produzir níveis de sentido subjetivos sobre a realidade (a.k.a. ficção). 

Se esta imagem do barco não fosse retirada da internet, este texto seria um testemunho. Um testemunho dos modos de construção de uma imagem ou de como uma imagem se pensa e torna linguagem. Um testemunho da forma como a arte e a vida se misturam, encontram e confrontam. Como a imagem do barco foi retirada da internet (desconhecendo-se o seu autor, contexto original, tempo e espaço) este texto torna-se, desde o seu início, numa ficção sobre os modos de construção do real através do mecanismo ficcional. A realidade é uma construção subjetiva e a arte como linguagem um artifício que produz real, ou melhor, que introduz no real espaços-outros de apropriação do mesmo pelos seus intérpretes. O artista é o falsário elevado à enésima potência e este texto é o testemunho dessa verdade.

(onde a realidade e a ficção se misturam, eu estou no meio delas, Nuno Leão, 2014)